Crise mostra limites para interferência de Bolsonaro em ações da PF, diz cientista político
Os desdobramentos da crise provocada pela decisão do presidente Jair Bolsonaro de mudar o comando da Polícia Federal mostraram que tentativas de interferência política do presidente na instituição encontrarão obstáculos significativos, diz o cientista político Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo.
“As chefias dessas instituições podem cair em mãos alheias, mas há uma cultura institucional capaz de resistir a elas”, diz Arantes, autor de estudos sobre o fortalecimento da PF, do Ministério Público e de outros órgãos de controle após a redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988.
Na sua avaliação, a investida de Bolsonaro sobre a PF faz parte de um esforço para desmantelar essa rede de instituições e dá continuidade a uma ofensiva iniciada pela classe política quando a Operação Lava Jato estava no auge.
Para o pesquisador, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que foi responsável pelas ações da Lava Jato em Curitiba antes de entrar no governo, pouco fez para conter esse movimento antes de seu rompimento com Bolsonaro.
Moro se demitiu por discordar da decisão do presidente de trocar o diretor-geral da PF, substituindo o delegado Maurício Valeixo, que o ex-juiz escolhera, pelo diretor da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alexandre Ramagem, alinhado com Bolsonaro.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, barrou a indicação, e o presidente nomeou para o cargo o delegado Rolando de Souza, que era braço direito de Ramagem na Abin.
“No pior dos nossos pesadelos, talvez o presidente almeje uma polícia política, em dobradinha com a Abin, e ambas a seu serviço pessoal”, diz Arantes, que defende mandatos fixos para o diretor-geral da PF e autonomia financeira para preservar a instituição.
Tem sentido falar em autonomia da Polícia Federal? A rigor, a PF não é um órgão autônomo como o Judiciário ou o Ministério Público, embora muitos defendam que deveria ser. Ela é um órgão do Poder Executivo, submetido ao Ministério da Justiça, que se subordina ao presidente.
O que muitos chamam de autonomia da PF é, na verdade, resultado de um processo de afirmação institucional que a foi blindando contra interferências políticas externas, mas que ainda não se consolidou em lei ou na Constituição.
Como a PF conseguiu isso? Ela recebeu forte investimento em governos anteriores, mas o principal foi um processo interno de renovação de quadros, em que se desenvolveu um novo espírito de corpo, um novo ethos na corporação.
Eles definiram que a missão da PF é produzir investigações e provas de qualidade, que tenham impactos efetivos, e essas ideias culminaram nas grandes operações de combate à corrupção e ao crime organizado dos últimos anos, que conferiram à PF grande prestígio e reconhecimento.
O que muitos não se dão conta, inclusive o presidente, é que nessas operações a polícia cumpre ordens de juízes a pedido de procuradores. Ou seja, a PF é uma polícia judiciária, que serve ao sistema de justiça, e não ao presidente ou ao seu ministro.
As acusações de Moro, que apontou tentativas de interferência do presidente, mostram que esse modelo está em xeque? As investidas de Bolsonaro sobre a PF representam um grave retrocesso. Mas elas estão em linha com o que ele vem fazendo com os órgãos de controle e fiscalização desde que assumiu.
Diferentemente de presidentes anteriores, Bolsonaro mexeu no Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], na Receita Federal e em outros órgãos, e vem ajudando a desmantelar a rede de instituições de controle. Para quem se elegeu com a promessa de combater o crime e a corrupção, é certo falar em estelionato eleitoral.
Até no caso de uma instituição independente como o Ministério Público, Bolsonaro não teve dúvida em ignorar a lista tríplice encaminhada pelos procuradores e nomeou um procurador que se fez candidato alinhando seu discurso ao do presidente.
Moro assistiu a tudo isso e pouco fez. Apenas estabeleceu como limite a não-interferência na PF e, diante da investida final do presidente, só lhe restou desembarcar do governo.
No caso da PF, a instituição tem como resistir? Haverá resistência a tentativas de interferência política, derivada daquele ethos que mencionei e apoiada nas instituições de Justiça que interagem com a PF.
Quando [o ex-presidente Michel] Temer trocou o comando da polícia e o nome foi mal recebido pela corporação e seus parceiros no sistema de justiça, seu mandato foi tumultuado e curto. O mesmo acontece no Ministério Público. As chefias dessas instituições podem cair em mãos alheias, mas há uma cultura institucional capaz de resistir a elas.
Bolsonaro recuou após o veto do STF a Ramagem, nomeando outro diretor-geral, e as mudanças feitas até agora parecem ter respeitado a política interna. São sinais dessa resistência? O presidente até recorreu da decisão do STF, mas, na dúvida, nomeou outra pessoa. O novo diretor-geral promoveu imediatamente uma mudança na superintendência do Rio de Janeiro, mas optou por um nome que não figurava na lista de Bolsonaro. Até um delegado da confiança de Moro foi mantido numa diretoria da PF.
Em suma, o jogo passou a ser de acomodação. Mas, para não deixar dúvida de que a temperatura sempre pode subir e que é possível resistir à interferência política, a PF encerrou a semana com uma operação contra um deputado do centrão [Sebastião Oliveira (PL-PE)] que detém influência justamente em um dos órgãos cedidos por Bolsonaro em sua aproximação com o grupo político no Congresso.